A frase que está no nosso título de hoje – “Criatividade é a inteligência se divertindo” – é atribuída a ninguém menos que Albert Einstein. Porém erroneamente, como acabei de descobrir.
Essa é uma coisa bem comum, frases que se perdem de seus autores ao longo do tempo e acabam sendo atribuídas a outras pessoas e às vezes até mudam de significado.
Eu mesma já fui enganada: tenho um poster com essa frase, assinada como sendo de Einstein e até fizemos um post dessa citação com a carinha do Einstein no nosso Instagram. Estamos no sistema.
Mas independentemente de quem a tenha dito ou escrito, essa citação é um bom ponto de partida para uma reflexão sobre a relação entre criatividade e inteligência.
Vem comigo explorar as relações que podemos observar nos estudos sobre esses dois conceitos!
Pesquisas sobre inteligência e criatividade
A ciência que estuda os processos do pensamento é a psicologia. Ao longo do tempo, muitos estudos foram desenvolvidos para entender melhor o que é a inteligência, como ela se manifesta e como poderíamos de alguma forma “medi-la”.
Foi daí que surgiram os testes de QI (quociente de inteligência). Essa e outras padronizações foram, aos poucos, construindo uma ideia de que a inteligência seria algo pertencente a uma minoria super desenvolvida, que era boa em matemática e escrita.
Não que a intenção dos testes de QI fossem ruins, pois não eram.
O objetivo era medir os níveis de habilidade dos alunos para saber como ajudar aqueles que não se saíssem tão bem. Mas aos poucos, seu significado foi se deturpando, até virar um mero atestado de gênio ou… o oposto de gênio.
Mas em 1950, houve uma virada de chave que abriu uma nova possibilidade nos estudos sobre inteligência. J. P. Guilford, em seu discurso de posse da presidência da APA (American Psychiatric Association), convocou os pesquisadores a explorarem mais o conceito de criatividade.
Até então, a ideia de criatividade era algo totalmente subjetivo. Não se tinham estudos tentando entender, definir, explorar e compreender mais a fundo esse conceito.
Foi a partir desse incentivo de Guilford que novas linhas de pesquisa surgiram, levando a um entendimento mais profundo e realizando experimentos para se compreender melhor a criatividade.
A relação entre os estudos sobre inteligência e criatividade
Não é à toa que Guilford incentivou essa nova linha de pesquisa. Ele mesmo já vinha desenvolvendo estudos sobre inteligência.
Em seus estudos, propôs uma teoria que descreve que a inteligência humana se baseia em operações, conteúdos e produtos, podendo gerar 120 estruturas diferentes de pensamento. Entre elas, estaria o pensamento divergente, onde se encontraria a criatividade.
Os estudos de Guilford influenciaram diversos pesquisadores da criatividade, incluindo Paul Torrance, que é reconhecido como o “pai” dessa área.
Torrance, por sua vez, já contribuiu para compreender aspectos cognitivos e emocionais da criatividade de forma mais profunda. Baseou-se no entendimento de Guilford para desenvolver a ideia de forças criativas e criou testes para avaliação da criatividade.
Mas o campo ainda tinha (e tem) muito crescimento pela frente.
Evolução das pesquisas
Partindo para a década de 1980, chegamos a um ponto de inflexão: os estudos começaram a questionar a eficácia dos diversos métodos padronizados de compreender a inteligência.
Uma das teorias que mais marcou a mudança da interpretação sobre a inteligência foi apresentada por Howard Gardner: a Teoria das Inteligências Múltiplas (TIM).
Esse pesquisador propôs que a inteligência não é uma coisa só, mas “um potencial para diversos tipos de exigências sociais e profissionais”. Inicialmente, apresentou 7 tipos de inteligência e hoje considera formalmente 8:
- Inteligência Lingüística
- Inteligência Lógico-matemática
- Inteligência Espacial
- Inteligência Corporal-cinestésica
- Inteligência Musical
- Inteligência Interpessoal
- Inteligência Intrapessoal
- Inteligência Naturalista
Gardner ainda questiona a existência de uma nona inteligência, a Existencial, que é relativa a questionamentos profundos sobre a vida. Em uma palestra, ele diz que considera que existem “8 inteligências e meia”, já que ainda não tem essa última bem desenvolvida.
Em paralelo, os estudos sobre criatividade também evoluíram.
Aos poucos, esse conceito foi sendo compreendido como algo que vai além de um atributo pessoal, buscando compreender a influência dos aspectos sociais no processo criativo, como propôs Teresa Amabile (pesquisadora americana da Universidade de Harvard).
Outros aspectos, como motivação e personalidade também entraram em análise, além das relações entre cultura, ambiente e indivíduo, propostas na visão sistêmica de Csikszentmihalyi.
Semelhanças entre mitos da inteligência e da criatividade
É claro que esse panorama geral que fiz aqui não chega nem perto de se aprofundar na temática da relação entre os estudos sobre inteligência e criatividade. Mas já é possível perceber alguns detalhes.
Os mitos que construíram a ideia da pessoa “inteligente” e da pessoa “criativa” são muito próximos.
As pesquisas passaram por caminhos muito parecidos até desenvolverem visões mais amplas, que abrangem os conceitos de criatividade e inteligência de um modo mais próximo ao que se observa no mundo real.
Por muito tempo, essas ideias foram reforçadas, republicadas, reanalisadas, reaplicadas, até se tornarem algo muito enraizado, difícil de desconstruir.
O problema dos mitos é que eles tentam facilitar a interpretação sobre algo, podando aquilo que é difícil de entender e fazendo o conteúdo caber em uma explicação simples: “Fulano consegue fazer isso melhor porque sua inteligência é superior”.
É tão mais fácil criar ícones para explicar o que é ser inteligente ou criativo. O próprio Einstein está aí que não me deixa mentir.
Quantas vezes você já viu a cara do velhinho de cabelos arrepiados e língua de fora para representar alguma coisa relativa à inteligência?
Voltando à frase do nosso título: Criatividade é a inteligência se divertindo. Seria muito mais glamuroso se fosse ele que tivesse dito, não é mesmo? Afinal, só alguém tão altamente elevado em inteligência poderia ter dito algo tão genial (contém ironia).
Se a teoria falha em explicar o mundo real, então porque estudar?
Você pode estar pensando: “É, mas as teorias científicas estão o tempo todo tentando fazer isso: colocar tudo dentro de quadradinhos, para tentar interpretar o mundo com lentes bastante específicas, que às vezes até cegam aqueles que pesquisam.”
Pois é, eu tô sabendo dessa parte. Mas ainda assim, defendo que vale a pena se aprofundar no conhecimento teórico para pensar nas soluções práticas.
Eu me considero uma pessoa muito mais pragmática do que teórica, mas eu não saberia lidar nem com metade dos meus problemas do dia a dia se não fossem muitas e muitas horas de estudo e reflexão lá atrás na faculdade e agora também, sempre que dá.
Criatividade é a inteligência se divertindo: origem da frase
Para fechar, vou deixar aqui o adendo sobre uma possível origem da frase que deu início a essa reflexão.
Sei que não é a melhor das referências, mas o site Pensador que apresenta a frase “Criatividade é a inteligência se divertindo” como sendo de autoria desconhecida.
Em uma observação, comenta que a citação original seria “Talvez a imaginação seja apenas a inteligência se divertindo” atribuída ao crítico literário George Scialabba, nascido em 1948.
Se essa informação fosse confirmada, Scialabba teria escrito a frase anos depois de Einstein já ter morrido, em 1955.
Enfim: não tem como ter certeza da autoria, mas é uma frase interessante para refletir.
Referências:
GARDNER, Howard E. Multiple intelligences: New horizons in theory and practice. Basic books, 2008.
ASHTON, Kevin. A história secreta da criatividade. Sextante, 2016.
NEVES-PEREIRA, Monica Souza; FLEITH, Denise de Souza (orgs). Teorias da criatividade. Alínea, 2020.